sábado, 16 de novembro de 2013


In memorian

É isso mesmo. Tudo tem um tempo certo de ser. Todos têm um tempo certo para ser. Um dia você acorda e de repente nada é mais como era. De repente, você abre os olhos e se descobre tendo um passado. Mais que isso! Que as pessoas de seu passado não existem mais, as casas foram vendidas, se perderam em meio a construções mais modernas e as ruas ganharam asfalto te deixando sem lugar de referência. Onde estão aquelas que podem dizer exatamente como você era em uma época em que não atinava para isso? Em que lugar se perdeu a imagem das praças e das árvores que povoaram seu imaginário e ajudaram a construir suas recordações, compondo momentos só seus? Só sobraram as fotografias que você, com os olhos marejados, fita comovido como a querer reviver o já vivido. Você até tenta voltar e resgatar o que fez parte de você, mas para onde, se o lugar não mais existe? Para quem, se a gente que povoava seu antigamente não está mais lá?

Contrariando as expectativas dos livros de autoajuda, você percebe que crescer é eternamente se adaptar ao que não mais existe, a quem não mais existe, aprendendo a lidar com as ausências que nada de novo é capaz de substituir... Aí, você aprende a caminhar com os vazios dessas presenças, e constata mesmo que seus patrimônios, com o tempo, se transformarão em ausências e saudades, ajudando a edificar um passado que cresce até você mesmo se tornar passado para si e para os outros.

A lei da vida só pesa, de fato, quando os patrimônios se tornam intocáveis, deixando uma lembrança que você tenta reter mais um pouco, mas que não consegue, porque o tempo se incumbe de fazê-lo esquecer. Com o passar dos dias e anos, tudo perde a nitidez e você entende o real significado da palavra saudade; as recordações se confundem, os sabores se misturam e você não sabe se tudo era exatamente do jeito que imaginara, porque sua memória não é mais a mesma. Muito se perdeu e você aprende a conviver com isso, à custa de muitos sorrisos que vão ficando pelo caminho.

A arte de abrir mão é cruel, mesmo que com ela, você amadureça a fim de recomeçar... com menos cor, sorrisos mais raros, alegrias mais contidas. A arte de abrir mão torna o ser humano mais prudente e resiliente, ao tempo em que o transforma em algo meio morno, meio outono, meio vivo mesmo.
Carolina Moraes
Feira de Santana, 12 de novembro de 2013

sábado, 5 de outubro de 2013


Continho de amor sozinho

Marianinha, vou-me embora! Cansei de ti, querida! Cansei destas casas, desses homens todos circulando em redor de nada, desse jardim sem propósito! Esse cheiro de casa, rotina, sonho programado. Preciso de tempo para ler meus livros! Além do mais, muito do que venho escrevendo ainda está por terminar. Essas paredes me sufocam, Marianinha! Você precisa me entender! Não me olhes assim como quem não compreende. Nunca fui seu. Nunca fui de ninguém, nem de mim! Levanta, Mariana! Não me ates a teu chão, porque isto me reprime! As malas já estão prontas e só preciso saber de ti, que ficarás bem! Aprende comigo! Esses arroubos adolescentes fazem mal, querida! Nos deixam vulneráveis, expostos a um outro ser, tentados a unir nosso caminho ao dele... abrir mão de nossos quereres, sentir uma dor que não nos pertence! Mais que isso! Sentir apego de tal modo que não se consiga mais pensar sua própria vida sem que a mesma esteja misturada a do outro como uma química insolúvel, provocando uma dependência sem remédio. Amar é perigoso, querida! E isso não pode fazer bem! Ouve! Foge! Faz como eu... Faz! Emudece o coração e prometo que nunca mais irás chorar! A solidão não é tão mal, pois nos liberta daquela ânsia de temer a perda! É uma prisão viver refém de um medo tão cruel: ter e perder! A solidão é libertadora, Marianinha! Tu vens e vais quando quer, como quer. Com ela te tornas um corpo livre e não um sentimento! Com ela, serás como eu, querida! Sozinho. Marianinha?

 ... ... ...

Foi-se embora. Solidão é costume!
Carolina Moraes
06 de outubro de 2013

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Ele



Mesmo assim, as coisas estão caminhando razoavelmente bem. Sem clichês, até o pessoal lá em casa está aceitando melhor. No início é sempre aquela onda de intolerância, um silêncio ensurdecedor que se alia às expressões de desprezo, insatisfação. Depois é só o silêncio como a me dizer que contrariei as expectativas de todos! É foda carregar a sensação de ter decepcionado. No fundo, no fundo, eu me sentia na berlinda: ou decepcionava eles ou a mim... Escolhi a primeira opção mesmo não entendendo a razão de tanta frustração. A escolha era minha e dizia respeito a mim. Só a mim? Bebericava um vinho chileno maravilhoso enquanto observava ele se vestir. Era lindo, inteligente e valia cada barra que eu vinha enfrentando. E como valia! Estar com ele era diferente, não apenas novo, mas diferente e a diferença fascina, atrai, prende mesmo! Era 7 da noite e ele veio em minha direção. Hoje iria dormir em casa. Despediu-se de mim e foi embora. Assim que bateu a porta, me veio a velha sensação de insegurança... O pensamento teimava em imaginar coisas, o coração angustiado pela incerteza do “se”. Assustei com o telefone. Era minha mãe perguntando mais uma vez se iria para casa. De última hora decidi que sim. Sorri ao lembrar minha mãe, sem ela todas essas coisas seriam muito mais difíceis de se viver! Apesar de eu perceber claramente que ela não concordava de pronto com minha relação, a maneira como ela lidava com isso era muito mais leve, sem colocar seu amor por mim à prova, sabe? É como se ela, silenciosamente, me dissesse, “amar você independe de certas coisas!”. Maravilhosa a minha mãe. Já o meu pai envolve outras tantas questões... Não sei quem foi que delimitou as funções de pai e mãe, relegando ao pai o papel de intolerante! Me sinto diante dele como alguém sempre em busca de aprovação, com aquela cara de pedinte que implora “por favor, concorde comigo, aceite minhas escolhas”, mas ele finge não ouvir e se faz de cego até. O mais que faça, sempre o faz deixando claro que para ele, minha relação é um borrão no papel que fora apagado e deixara apenas vestígios para ele jogar em minha cara de vez em quando. E quanto mais percebo essa situação, entendo menos essa minha necessidade ridícula de aprovação que parece que exala quando estou diante dele. Até tento controlar, mas não consigo! Queria me libertar desse sentimento insano, pois sei ser impossível, e me sentir mais leve. Acho mesmo que a libertação de mais um “se” seria muito bom para mim. Assustei novamente com minha mãe ao telefone pedindo que chegasse há tempo para o café. Havia feito sopa de abóbora. Hum! Amava sopa de abóbora desde criança! Levantei pensando nele. Queria mesmo ligar, contar que iria para casa. Aquela vontade doida de falar a todo tempo, aquela saudade irracional de quem parece que passou anos sem ver a pessoa. E ele tão independente, tão senhor de si! Sua segurança me assustava, para mim era impossível amar e não temer. E ele não temia! No fundo, no fundo, achava mesmo que não me amava e só de pensar nisso, chegava a perder o fôlego! E por mais que me censurasse, esse pensamento me aparecia insistentemente, como uma certeza real! Assustei com o telefone gritando meu nome e espatifando-se no chão! Bati a porta do apê e agachei em desespero! Merda! Só me faltava ter quebrado o aparelho! E agora? Como iríamos nos falar? Precisava de um aparelho urgente! E se ele ligasse? Respirei fundo tentando parar com aquelas reações ridículas! Eu tremia como se tivesse 15 anos! Entrei no elevador e tentei sorrir! Pensamentos ruins atraem coisas ruins! Afinal, não havia nada que justificasse tanta angústia! Saí do prédio mais leve e decidi que iria a pé. Precisava de ar! Era isso! Uma boa caminhada seria ótimo. E de repente, já não sentia aquele aperto, aquela sensação de perda que sempre incomodava. Entrei em casa pela cozinha, como sempre fazia! O cheiro de sopa de abóbora inundava tudo! E como de praxe, abracei-a por trás! Seu perfume, discreto, era único, suficiente para se fazer sentir sem, no entanto, sufocar. Minha mãe era linda! E como queria ser como ela! Ela tomou meu rosto entre suas mãos e beijou-me como se fosse uma criança. E foi como se nada pudesse me alcançar naquela hora, porque ela estava comigo! Conversamos horas e horas enquanto a ajudava no preparo do jantar. Tudo estaria perfeito, não fosse a leve apreensão pela chegada de meu pai. Ela notava isso! Aliás, ela notava tudo! E no fundo, talvez também ansiasse pela aprovação dele, como eu! Mas sabia que seria complicado... A situação era complicada! Ele chegou calado, sabia que eu estava em casa e se fechava em copas. Aprendera a não mais me maltratar, mas continuava a me olhar como se não me visse! Nos cumprimentamos com polidez e comemos juntos como antigamente, imersos na tranquilidade familiar de costume, quebrada apenas por alguns momentos em que me excedia nos risos e gestos que ele recriminava prontamente. Tudo bem! Há muito tempo que eu, a fim de viver bem, deixara de me impor para ele. E salvo essas situações, a noite correra perfeita, ele fora dormir e nós ficamos a conversar, beber um bom vinho e a rir de coisas banais! Tinha tanta vontade de conversar com ela, falar de meus medos, da minha relação, de como ele era! Mas preferia me calar! Penso que ultrapassaria certos limites! Não sabia exatamente quais eram, mas sabia que havia limites! Acho até que fui eu quem os impus! Era melhor assim!  Tarde da noite, subi para o meu quarto e me deparei com as antigas coisas, os brinquedos nas prateleiras, as fotos na parede. Era bom estar ali e não era, ao mesmo tempo! O cheiro da infância e as lembranças de quando tudo era diferente se misturavam ao presente! Tomei o celular entre as mãos e tentei liga-lo novamente, sem sucesso! Sentei na cama, tentando controlar o turbilhão de sensações que frequentemente me assaltava desde que decidi sair de casa. Por que as coisas deveriam ter aquele peso? Qual a razão de não poderem ser diferentes? Algumas lágrimas caíram de meu rosto... Acho mesmo que não queria ver o óbvio: não pertencia mais àquele universo, àquela casa... Aquelas pessoas amavam outra pessoa e não eu, e como pensar isso era ruim! Um misto de culpa, medo e mais um outro tanto de sentimentos teimava em me atormentar. Definitivamente não conseguiria dormir! Desci as escadas lentamente, há essa hora a casa já dormia! Abri a garrafa do vinho que havíamos bebido até a metade e sentei no sofá da sala. Fiquei ali por horas até me deparar com a figura do meu pai. Ele me olhava soturno, silencioso, e sob a luz do abajur, sua face parecia a de outra pessoa! Sorri para ele, mas não houve resposta, ao contrário disso, houve um olhar que por mais que tente, nunca irei conseguir interpretar. Não era ódio, também não era amor... Não sei o que era! Mas era ruim, porque parecia com nada! Levantei sem fita-lo nos olhos e me dirigi à porta. Juro que pensei que ele iria impedir que eu fosse, mas não o fez! Congelado ao pé da escada, continuou a me encarar com aquela expressão incompreensível, talvez esperando realmente que eu fosse e não mais voltasse, e não mais atendesse às ligações e convites de minha mãe! Abaixei a cabeça – e na verdade nunca entendi porque fiz isso – e saí de lá olhando para o chão. Saí mudo, calado de pensamentos por dentro. Saí e nunca mais voltei!

Carolina Moraes
09 de agosto de 2013

sexta-feira, 28 de junho de 2013


Um fim mal acabado

Seu nome era Constança. Suave como a pluma, falava a respeito da crise mundial, apontando soluções sempre impossíveis e convocando soldados para sua marcha surda. Os estudantes passavam por ela e olhavam como se fosse doida. Depois de horas a fio tecendo teorias a respeito da desigualdade social, seca no nordeste, desemprego e coisas assim, descia do púlpito e seguia muda e só. Marchava sempre só. Estudávamos na mesma universidade. Ela fazia Filosofia, falava francês e gostava de discutir maneiras de resolver problemas insolúveis. Eu fazia Engenharia Civil e estava mais interessado na urbanização desenfreada que ela tanto criticava. Estagiava na construção de alguns condomínios de casas e apartamentos para funcionários públicos e precisava desse impulso para estabilizar de certo modo minha posição. A formatura estava próxima e muito ainda estava por fazer. Éramos completamente opostos e talvez por isso, apesar de meu interesse nunca tenha ousado me aproximar. Ainda assim, com tantas diferenças, aconteceu de a gente se encontrar. Como disse, ela marchava só, chovia, e nessas horas sempre chove. Eu parei meu carro financiado para dar-lhe carona. Os famigerados carros que ela tanto culpava pelos problemas ambientais de bla bla bla. Hoje, apesar de estar na moda, ninguém se preocupa muito com isso. O susto foi tamanho que a fez emudecer. Ela tão repleta de teorias e retóricas emudeceu diante mim acenando para que entrasse. Hesitou, mas entrou indecisa. Olá! Disse querendo ser natural, e aparentando naturalidade nenhuma. Ela me deu um sorriso de lado, um pouco vazio. Conheço você dos discursos inflamados na Universidade. Ela não se voltou para mim um segundo sequer e reparei que estava constrangida. Já reparei em você apreciando “os discursos inflamados” sempre de longe. Vive sempre sem tomar partido de causa nenhuma? Nem sempre. Eu disse rindo por sorrir. Tomo partido de causas menores. Nunca pretendi mudar o mundo. Ela se virou para mim indignada. Foi a primeira vez que pude fitar seu rosto tão perto. Quase bato meu carro financiado embevecido por aqueles olhos azuis lindos. Lindíssimos. Ouso dizer que se o pai de Capitu tivesse visto esses olhos, Dom Casmurro teria se perdido por uma Constança e seus olhos de mar. Um mar sem ressaca, vale ressaltar! Nos perdemos no tempo, meio atarantados por causa da situação. Era um não sei o quê que vinha de não sei onde. Engraçado lembrar. E foi engraçado viver, porque rimos e toda a tensão causada por divergências ideológicas se esvaiu diante dos olhos. Meus e dela. Decerto que meus olhos não eram lá essas coisas. Um castanho despretensioso perde lugar para qualquer par de olhos azuis ou verdes à moda europeia. Nem falo dos cabelos. Apesar de lisos, não eram loiros como os dela. Ah! Paradoxo! Constança nórdica e eu latino. Sorri mais e ela indagou curiosa. Expliquei a contradição e sorri mais ainda. Sorrimos os dois e foi bom! Ela apontou o lugar com o dedo e parei por impulso. Constança desceu do carro militante e rebelde. Agradeceu com um aceno sutil e sumiu na multidão. E pensei que teria sido maravilhoso se tivesse sido minha. Mas as ideologias eram um mal irremediável. Ela queria mudar o mundo e eu... bem, eu não queria. Hoje, anos depois, ela vive em um condomínio construído por mim, trabalha como professora e é mãe de três filhos. Seu marido é dono de uma frota de táxi e pelo que vi, não deu para saber se também sonhava em mudar o mundo.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Quem é ele?
 
Queria lutar contra a corrupção, mas esqueceu de não furar a fila e obedecer o sinal. No primeiro instante, não hesitou em negar a verdade e contar a sua versão da história. Pior que isso, não enxergou que poderia haver outra versão, outra verdade... Desde pequeno, aprendera a tirar vantagem a fim de se proteger, mesmo sem saber exatamente o que estava fazendo; hoje o faz conscienciosamente.
Aos poucos, compreendeu que ser politicamente correto é melhor, e assim aprendeu a ser correto só por malandragem. Várias vezes usa a hipocrisia a seu favor, censura as opiniões contrárias a sua, e hoje sonega o imposto e faz que não vê. Ouso dizer que sobe no palanque, vai às redes sociais e arrota certezas e promessas... Quando olho para “ele”, vejo cada um de nós que pensa a corrupção como algo engenhoso, trabalhoso talvez!
Ser corrupto é mais fácil que se pensa e tudo começa antes mesmo de nos darmos conta disso! Ser corrupto é mesmo tentador, e infeliz daqueles que desprezam essa informação! TODOS estamos suscetíveis a desvios de caráter e devíamos ser mais humildes na expressão de nossas ideologias, sobretudo ao julgar os outros!
Quer lutar contra a corrupção? Comece dentro de você, dentro de sua casa, em sua escola, enfim! Você verá quão trabalhoso é mudar a si mesmo! Mais que isso, verá que ninguém precisa de holofotes para ser honesto. A honestidade é linda mesmo quando assumimos o próprio erro! E o que seria da nossa honestidade, se não fosse a nossa mentira!
DESCONFIO dos que gritam certezas... Dos que são perfeitos demais! Do lugar que ocupo em minha sociedade, e tenho plena convicção que – com dinheiro ou sem – é APENAS UM LUGAR, tento fazer a minha parte e não ceder sempre à tentação que as facilidades da corrupção oferecem. E eu tento todo dia, todo dia...
Carolina Moraes

quarta-feira, 15 de maio de 2013


“Especiais”

             Saiu apressada... Queria pegar o ônibus das seis e já estava atrasada. Ela mesma era um atraso com aquela sua perna de metal que teimava em não flexionar o joelho. Trabalhava em uma loja de embalagens e dividia o turno com uma colega que mal olhava para ela. Não era feia, mas a pouca beleza que tinha não sobrepunha a frieza de sua perna mecânica. Chamava-se Aurélia! Os cabelos loiros escorriam pelos olhos aproveitando que as mãos ocupadas não podiam os prender atrás das orelhas. Tinha um corpo bem desenhado e se não fosse a maldita deficiência, teria... teria! Gaguejava toda só em pensar!

            Chegou ao ponto de ônibus com uma dificuldade diferente da costumeira. É que agora o maldito joelho estava emperrando e isso complicava sua locomoção! Teria que esperar até o fim do mês para então fazer o conserto. Ofegante, depositou a bolsa e os livros no lugar cedido por um moço lindo que mal a olhara nos olhos! Agradeceu constrangida e sentou-se silenciosa, observando as mesmas pessoas de todos os dias... E sempre eram as mesmas, com o mesmo semblante de pena, a mirar sua perna defeituosa. Segurou os livros com força e apertou-os contra o peito! Tinha raiva de si mesma por ainda se incomodar com os olhares e suas intenções de compaixão mascaradas pela solidariedade! Havia oito anos desde que se acidentou e ainda aquele aperto, a angústia teimosa e os olhos, insistentes em lacrimejar!

            Seu ônibus chegou apinhado de gente apressada, impaciente com a sua demora em vencer os degraus irritantes! Tantos! Três degraus intermináveis! Oh! Deus! Como odiava aqueles degraus. Antigamente subia sem nem dar por eles, tão displicente, corriqueira, feliz como uma adolescente no auge de seus 17 anos! Mas hoje, especialmente hoje, estava tudo tão mais difícil! O joelho teimava em não dobrar, obstinado em sua posição! Uma senhora se ofereceu para segurar sua bolsa e os livros que ela deu sem se dar ao luxo de recusar! Depois do calvário, sentou-se no local reservado a pessoas como ela. Sentou com os olhos baixos, muda e constrangida! Sempre esse maldito constrangimento, aquela vergonha de pesar mais que os outros, aquele medo de ver nos olhos das pessoas a sua limitação estampada como algo que incomoda e atrapalha a rotina dos que são ditos normais.

            Precisava ser otimista. Afinal, as coisas estavam melhorando! Estava trabalhando em um supermercado, embalava presentes e isso era ótimo! Usava as valiosas mãos que antes nem valorizava tanto! Deixara de ser uma inútil a se arrastar pela casa, ouvindo as queixas da tia! Está certo que na primeira oportunidade, suas colegas de trabalho davam um jeitinho de deixar escapar que depois dessas tais cotas para portadores de necessidades especiais, muita gente boa pro serviço tinha ficado desempregada! “A Jane saiu pra você entrar! A coitada agora está se vendo doida com a filha de cinco anos pra criar sozinha! Desde que foi mandada embora não arrumou trabalho nenhum! Mil vezes perder a mão que ficar sem emprego!” Certa vez, pensou até em se desculpar por toda aquela situação, mas não houve tempo, pois logo as poucas colegas que restaram foram substituídas por um outro tanto de mulheres normais e um outro tanto bem maior de deficientes! Era a lei! Deficiente agora não era mais deficiente! O nome agora era portador de necessidades especiais, e apesar de ainda não se achar uma coisa nem outra, preferia mil vezes ser chamada assim. Era mais digno de respeito. Ficou toda emocionada quando leu a reportagem dessa lei no jornal da vizinha e foi através da mesma que viu as ofertas de emprego e começou a trabalhar no mercado.

Iria completar dois meses no novo emprego e ainda não fizera muitos amigos. Não por falta de vontade, na verdade a questão era bem outra! Aurélia dividia o turno com uma moça normal que mal falava com ela! Seu nome era Marisa e vivia lixando as unhas com aquele batom vermelho encarnado que chamava mais atenção que os cabelos oxigenados. Trabalhavam juntas das oito da manhã à uma da tarde e, durante todo esse tempo, trocavam umas poucas palavras que não dariam para encher uma folha de caderno. Na verdade não tinham muito assunto e por mais que Aurélia se esforçasse, nunca conseguia mais que afirmativas e negativas secas!

Chegou pontualmente como sempre, apesar do maldito joelho, abriu o setor de embalagens e esperou Marisa, sempre atrasada. Mas nesse dia ela não veio. Seus olhos procuravam ansiosos pela chegada da colega que não vinha. O mercado ainda não tinha sido aberto e logo os clientes começariam a chegar. Junto com eles viriam as gorjetas, os sorrisos e promessas de algo mais, tudo para Marisa e seu batom chamativo cheio de malícia. Não sabia rir como ela, não tinha a mesma cara.

Foi quando ele veio silencioso e ficou a observá-la. De início, como sempre, sentiu-se constrangida e esperou sem muito pestanejar que o homem desviasse os olhos de seus olhos como era comum ver os rapazes fazerem, mas, estava atrás do balcão e protegida pela placa de madeira, por um momento pôde esquecer de sua condição e aos poucos foi se deixando envolver pelo sorriso tão jovial. Há tempos que não se sentia viva como mulher, pois sua deficiência, além de tudo, afastava qualquer possibilidade de relacionamento. Por isso, viu-se tentada a corresponder ao sorriso, estava mesmo decidida a fazê-lo e como não tivesse coragem, baixou os olhos mais uma vez. Acho que pensou que seu medo jamais lhe daria uma chance de saber se de fato teria sido bom!

E foi nesse entrementes que a coisa toda inteira se modificou. Ele caminhava para ela e o fazia com plenitude de gestos e olhares. Seu corpo estremeceu inteiro. Estava em pânico, paralisada diante do imprevisto, das possibilidades...

Aí ele chegou, sorriu e não se fez entender. Não falou. Gesticulou e nesse jogo Aurélia chegou a pensar que ele a tomava como surda, chegou mesmo a dizer ofendida que não o era, quando percebeu... Pensou que ele estivesse a zombar dela, mas não! Sentiu-se uma completa idiota ao notar que ele era surdo-mudo. Ele era o surdo, o deficiente, o portador de necessidades especiais! Aquilo era absurdo. Jamais a situação tinha sido vista por ela daquela maneira! Era como se ela não fosse também uma deficiente, como se a deficiência dele fosse pior que a sua... Estava desnorteada ao perceber que sentia todas aquelas coisas e procurava rearrumar tudo que já havia arrumado horas antes. Agora sim sabia! Ele só se aproximara porque sabia de sua perna aleijada. Ele sentiu-se igual a ela e isso era muito desaforo! Ser comparada a um surdo, ser cortejada por um surdo! Queria sumir dali. Seus olhos fugiam dos olhos surdos do homem que tentava se comunicar e não encontrava resposta! As mãos de Aurélia tremiam, seus braços penderam sobre o corpo e as caixas e embalagens desabaram como tudo a sua volta. Ele era surdo!

Em uma corrida desembestada, ela pegou a sua bolsa, seus livros e fugiu mancando do mercado repleto de pessoas. Correu para longe do homem, para longe de si mesma e das outras deficiências que enxergara em si naquela hora. O homem mudo não ouviu seu grito rouco, em contrapartida pôde ler em seu rosto a expressão do pavor que a fez fugir. Até agora ele deve estar parado diante do balcão, procurando a razão que desfez o sorriso da moça, se perguntando o que havia feito de errado.

Desde aquele dia, Aurélia nunca mais voltou. Decidiu que pessoas “especiais” eram “especiais” demais, sensíveis demais, preconceituosas demais... Preferiu se enfurnar novamente dentro de casa, a se arrastar pelas horas de dias intermináveis e esquecer!

quinta-feira, 2 de maio de 2013





Era a maçã

Era quase uma dor física. Os pensamentos espasmódicos flutuavam em torno da figura dela, ela tão distante, ela tão presente. Mesmo diante de tantas, em tantas, era nela que o pensamento teimava em pensar. E por mais que ele negasse, resistisse, ela vinha como verdade absoluta, feito um turbilhão a disparar o coração, vidrar os olhos como uma bebida alucinógena, como um cigarro que vicia. Se ao menos ela fosse um vício, com todas as cargas negativas que só um vício pode ter... Se ao menos ela fosse ruim. Seria tão mais fácil fechar a porta, deixar morrer.

Tentava a todo custo encontrar mazelas a fim de justificar o esquecimento. Era necessário esquecer. Mas ele sabia de quem ele estava falando e por isso mesmo lembrava o jeito manso de enrolar os cabelos longos, a mania leve de enlaçar as pernas entre as outras, como a dar um nó. Nó que o ataria para sempre! Os olhos cor de mel, os dedos esguios, as unhas sem pintura... ela inteira não tinha pintura e talvez fosse isso que fascinasse, enfeitiçasse. Ela tão ideal, tão promissora, tão diferente...

A dor era mesmo física, faltava-lhe o ar, os sentidos estavam conturbados, urgiam calmaria! Ele inteiro sentia dor por tanto querer! O que tinha de sentir outros cheiros? Justificava seus instintos de homem, era a regra geral, afinal! Mas ele tão inflexível, ela tão passional, ele tão proibido, ela tão espontânea...  

Não podia! Não era certo. As vocações eram outras, assim como os caminhos... mas houve uma concessiva a desmoronar tudo. Ou teria sido uma adversativa com vias de conclusão? O que se sabe é do que se sentiu antes da dor. Ela, a inocente. Ele, o predador. O santo, o quase padre. O pecador, o quase homem. Apesar da ausência de ações e palavras, o pensamento era um sertão imenso de desejo queimando como algo seco e constante. Eva, tão retirante, tão retirada! Eva, tocando piano e toda um silêncio só! Chegara muda e firme, arauto de inquietações. Eva fértil, convidando ao pecado.

Sem dizer palavra, fazia-o tremer, sem ao menos tocar fazia-o sentir coisas já esquecidas. Um único toque e tudo seria nada! Foi quando, diante do piano, a tecla emperrou e a música que inundava a sacristia estancou como um ferimento nobre, feito à bala. Foi preciso puxar, se achegar, estancar...

O que se deu depois foi de um lirismo erótico sem igual! Ele ao lado dela, a tecla teimosa, as unhas sem pintura, a concessiva que imperou diante do braço roçando no outro braço, a boca salivando diante do reprimido... E ela, Eva inocente, de nada se apercebia e deixava que os cabelos envolvessem o pescoço dele. Ele Adão, quase padre no conhecer, dono de um desejo imantado mesmo sem nunca ter conhecido uma mulher. E os cabelos atando-o ao desejo, e os olhos chamando-o sem piscar...

Era quase uma dor física. Quase uma dor física que o fez desfalecer ao lado dela... que sentada ao banco, olhava desentendida. Ele arfante, ela, Eva desconhecida. Face a face, a um toque das mãos... houve o toque das mãos. E ele e ela... Eva tão inocente, ele tão Adão... Ergueram-se concomitantemente e ao passo em que ele recuava, ela incidia sobre o desejo violento. Eva descobridora! Eva pele na boca, beijo no seio...

Era quase uma dor física. Sexo no sexo, a concessiva diante de santos, anjos e castiçais. Eva real, unânime como um vício, gozo como descoberta. Eva, maçã! Ele, Adão inteligível. Ela, leve; ele suicida!
 
Carolina
2009